Produção da Netflix sobre o incêndio em Santa Maria capricha na direção, mas tropeça em seu texto.
Em 27 de Janeiro desse ano, a tragédia da Boate Kiss completará dez anos. O incêndio matou 242 pessoas e uma década depois ainda não tem uma definição exata no que diz respeito a seus culpados. A boate – ou o que restou dela – ainda está de pé, com a logo “Kiss” que ficou conhecida no mundo inteiro, empoeirada pelo tempo e afetando todos que passam em suas rotinas pela Rua das Andradas. Essa foi uma tragédia de detalhes perturbadores, que vitimou jovens universitários com as vidas todas pela frente e que chocará todos nós, não importa quanto tempo passe.
Todo Dia a Mesma Noite, o livro de Daniela Arbex no qual a minissérie homônima da Netflix se baseou, foi lançado em 2018. Nele, Daniela separa os capítulos contando os horrores que viveram as famílias dos jovens mortos ou feridos na boate. Algumas histórias foram selecionadas por ela e parte dessas histórias chegou até o roteiro da minissérie de Julia Resende e Carol Minêm. Nas páginas da obra de Daniela, a linguagem é bastante direta, documental, claramente jornalística; o que proporciona à adaptação a chance de deixar essa narrativa mais envolvente e emocional.
Para a maioria das pessoas que derem play na minissérie haverá muita curiosidade sobre o incêndio em si. O livro passa pelos acontecimentos de dentro da boate de maneira pontual e, em grande parte, mais para o final das páginas. A minissérie toma uma decisão mais linear e começa com o dia da festa que reuniu os jovens na casa noturna. Isso é necessário para que nos episódios seguintes o público se envolva com as famílias desses jovens, já que, de fato, o livro de Daniela é sobre eles e não se aprofunda exatamente nas vítimas diretas.
A produção da minissérie fez um trabalho esmerado na reconstrução dos eventos daquela noite. O interior e o exterior da boate parecem exatamente iguais aos originais. Contudo, é possível notar como o roteiro e a direção se esquivam um pouco de explorar os detalhes de como funcionava a casa noturna, quais eram seus espaços, suas saídas, como eram os banheiros onde a maioria das mortes aconteceram; além de evitar mostrar melhor como era a rotina da casa. Tudo isso poderia ter sido ilustrado com sequências entre os personagens e também ajudaria a desmascarar ainda mais todo ciclo de negligências que resultaram na tragédia.
É como se a minissérie tivesse certa pressa em escapar de dentro da boate, quase tanto quanto os personagens. Assim que o incêndio começa, as câmeras lideradas por Julia e Carol são guiadas para retratar a escuridão e o pânico com o maior realismo possível. Os depoimentos de sobreviventes naquela época estenderam os acontecimentos de uma maneira que proporcionou uma compreensão melhor do que teria acontecido lá dentro; mas a direção tomou a decisão de ser mais direta, o que é perfeitamente compreensível diante das circunstâncias. Porém, quando chegamos ao estudo de caso dos episódios seguintes, ficam algumas lacunas que preenchemos com nosso conhecimento prévio e não exatamente com o que a minissérie mostra.
Todo Dia a Mesma Impunidade
O que pode acontecer com Todo Dia a Mesma Noite é o que acontece quando as pessoas assistem uma encenação de fatos reais em busca justamente de detalhes: elas se desinteressam quando termina a exploração direta da tragédia. O incêndio acontece no episódio 1, a busca pelas vítimas acontece no episódio 2 e então entramos no que deveria ser mais importante: a luta das famílias pela responsabilização dos culpados. A minissérie, na verdade, entrega a seu elenco adulto a força dos episódios finais. É o detalhamento da dor dessas famílias que interessa ao enredo.
Para isso, o grupo de pais formados por Paulo Gorgulho, Bianca Byington, Leonardo Medeiros, Debora Lamm e principalmente Thelmo Fernandes, domina a reta final com um trabalho comovente. É a partir daí que as diretoras vão conseguindo extrair beleza em meio a uma história com tanta dor. As sequências são difíceis… doloridas. É impossível não sentir um baque quando assistimos àqueles pais perceberem que se os filhos não estão no hospital, é porque estão entre os mortos... Todo esse caos vai dando lugar a uma série de quadros tristes, embalados por uma trilha nacional muito bem escolhida, que acaba produzindo, sem querer, um coletivo de homenagens.
Nem sempre o texto ajuda o empenho desses atores. A narrativa de Daniela, no livro, é competente, mas pouco artística. As diretoras conseguem resolver imageticamente esse impasse principalmente nos episódios 3, 4 e 5. O texto, contudo, tem mais instabilidade durante todos eles. Há momentos muito inspirados (como o poderoso monólogo final de Thelmo Fernandes), mas um bocado de frases feitas muitas vezes afasta alguns diálogos da naturalidade necessária.
Tudo na minissérie é tomado de comoção e é difícil passar uma análise por esse filtro tão cheio de sentimentos humanos extremos. Muitas vezes um desses diálogos não tão bem trabalhados, vem acompanhado de uma sequência em que pais enfrentam a dor de uma perda; e é impossível não deixar de lado qualquer preciosismo a respeito. O horror e a dor daqueles pais é desproporcional a qualquer suposta compreensão que tenhamos sem vivê-la. Todo Dia A Mesma Noite é uma produção que não se “defende” com isso, mas que, inevitavelmente, esvazia a obrigação de julgá-la enquanto obra de arte.
O julgamento dos acusados pelo incêndio (que erraram por negligência) já aconteceu e eles foram condenados. Antes do começo de 2023 suas sentenças foram anuladas. A tragédia da Boate Kiss fará 10 anos sob essa realidade. Os envolvidos estão livres, esperando um novo julgamento, em meio a essa latência de culpas e indignações que ronda o caso. Nenhum deles queria matar ninguém, mas eles mataram. Talvez a existência dessa minissérie evidencie mais uma vez a ferida aberta de uma comunidade marcada para sempre. Ninguém queria matar, mas matou. Há 242 famílias que ainda estão manchadas de fuligem. Há 242 evidências disso sepultadas em Santa Maria.
Fonte: Omelete